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O Princípio da Autonomia e o Consentimento Livre e Esclarecido


O Princípio da Autonomia e o Consentimento Livre  e Esclarecido

Autores: Daniel Romero Muñoz e Paulo Antonio Carvalho Fortes

Fonte: http://www.portalmedico.org.br/biblioteca_virtual/bioetica/parteiiautonomia.htm

 

Quem deve decidir?

Um problema fundamental na relação médico-paciente é o da tomada de decisão, principalmente no que se refere aos procedimentos diagnósticos e terapêuticos a serem adotados. O dilema que geralmente se impõe nas várias situações é: a decisão deve ser do médico, preparado na arte de curar e que melhor conhece os convenientes e os inconvenientes de cada conduta, ou seja, aquele que sabe mais? Ou do paciente, porque é o dono do seu próprio destino e, portanto, deve decidir o que quer para si ?

 

Este ponto crucial das discussões bioéticas implica na formulação de outras questões: qual deve ser a postura do médico no que tange ao esclarecimento do paciente? Deve contar-lhe, com detalhes, o diagnóstico e o prognóstico, bem como as condutas diagnósticas e terapêuticas? Deve, sempre, obter dele o consentimento para realizar essas condutas?

 

A postura tradicional do médico na relação médico-paciente

 

O Juramento de Hipócrates, primorosa obra do saber humano, fornece-nos a postura tradicional do médico na relação médico-paciente. É uma postura virtuosa, daquele que busca o bem-estar do próximo, às vezes às custas do seu próprio, ou seja, coloca como regra básica o princípio da beneficência. Esse juramento continua, ainda hoje, a ser a expressão dos ideais da Medicina e o alicerce da postura ética do médico. Há nele, entretanto, uma lacuna no que se refere ao livre arbítrio do paciente para decidir. O texto não contempla, em momento algum, os direitos da contraparte nesse relacionamento: a vontade do paciente não é mencionada.

 

Pode parecer estranho, à primeira vista, que essa obra grega, tão bela e profunda _ surgida em uma época e em uma civilização cujo povo uniu-se na defesa de ideais de liberdade e democracia (1) _ contivesse um vazio tão gritante.

 

Ocorre que o Juramento espelha a moral médica no apogeu do período clássico da cultura grega na Antiguidade (final do século V e século IV a.C.), tendo sido feito por médicos e para os médicos.

 

Herança da medicina sacerdotal, devendo ser prestado por todos que desejassem ingressar na "Irmandade", ele continha, entre outras, a obrigação solene de guardar segredo da doutrina. Simboliza a idéia religiosa de duas séries distintas de homens, separadas pela divisória rigorosa de uma ciência oculta e acessível apenas a alguns. Essa distinção entre o profissional e o leigo, o iniciado e o não-iniciado está expressa nas formosas palavras finais do Nomos hipocrático: "As coisas consagradas só devem ser reveladas aos homens consagrados; é vedado revelá-las aos profanos, uma vez que não estão iniciados nos mistérios do saber" (2).

 

Nessa época, porém, um novo tipo de médico estava surgindo na Grécia: o profissional que exercia a medicina-ciência em contraposição aos que se dedicavam à de cunho religioso . Na verdade, a nova ciência médica _ que sob a ação da filosofia jônica da Natureza converteu a medicina grega em uma arte consciente e metódica, na qual as hipóteses eram construídas a partir de fatos e não de concepções religiosas ou filosóficas apriorísticas _ sentia como um problema a posição isolada, ainda que elevadíssima, que ocupava na comunidade. Esse novo médico, apesar de basear-se em um saber especial que o diferenciava do profano, se esforça conscientemente para comunicar seus conhecimentos e encontrar os meios e os caminhos necessários para tornar-se inteligível. Seguindo as pistas dos sofistas, expõe em público seus problemas, por meio de "conferências" ou de "discursos" escritos. Surge assim uma literatura médica destinada às pessoas estranhas a essa profissão. Com essa divulgação do conhecimento médico nasce também um novo tipo de intelectual, "o homem culto em Medicina", isto é, o homem que consagrava aos problemas desta ciência um interesse especial ainda que não profissional e cujos juízos em matéria médica se distinguiam da ignorância da grande massa (2).

 

A melhor ocasião para transmitir ao leigo o pensamento médico era, certamente, durante o relacionamento com o paciente. Platão (nas leis) nos mostra que essa relação era muito diversa no que tange ao esclarecimento do paciente, dependendo do tipo de médico: o médico dos escravos ou o médico dedicado a essa medicina-ciência que tratava dos homens livres. O primeiro tratava seus pacientes sem falar, sua conduta era a de um verdadeiro tirano; o segundo, expunha detalhadamente ao paciente a enfermidade e as concepções

que tinha sobre sua origem, apoiando-se no que se pensava sobre a natureza de todos os corpos. Platão comenta que "se um destes médicos (de escravos) ouvisse um médico livre falar com pacientes livres, em termos muitos semelhantes aos das conferências científicas (...), certamente se poria a rir e diria o que a maioria dos médicos diz nesse caso: _ O que fazes, néscio, não é curar teu paciente, mas ensiná-lo, como se a tua missão não fosse a de devolver-lhe a saúde mas a de convertê-lo em médico". Ele (Platão), porém, vê nessa conduta médica, baseada no esclarecimento detalhado do paciente, o ideal da terapêutica científica (2).

 

Os relatos supracitados indicam que o profissional dedicado à recém-criada ciência médica, no período clássico da cultura grega, já buscava uma relação mais harmoniosa com o paciente através do esclarecimento deste, apesar da ética hipocrática ainda não ter se libertado da influência do autoritarismo da medicina sacerdotal.

 

Frise-se, entretanto, que essa postura do médico não era a norma geral e não se dirigia à grande massa, mas apenas aos homens livres, isto é, à parcela da população grega que se constituía na classe social de maior discernimento e que detinha o poder. Destaque-se ainda que o esclarecimento visava aproximar o médico do seu paciente, harmonizando esse relacionamento; não era uma conduta adotada porque o paciente tinha direito à informação. Na Grécia Clássica a idéia de democracia não incluía o que, mais tarde, veio a ser denominado direitos humanos (3).

 

Esses ideais da ciência médica grega, mergulhados no absolutismo que se seguiu à democracia grega e no obscurantismo da Idade Média, feneceram no seu nascedouro e a conduta autoritária e paternalista do médico para com o paciente continuou a preponderar na relação. Pior, durante o período medieval a filosofia grega da ordem natural foi cristianizada pelos teólogos e a ética médica passou a ser formulada pelos moralistas e aplicada pelos confessores; ao médico era dado tudo pronto, pedindo-se _ ou exigindo-se _ que a cumprisse (4).

 

A Revolução Francesa chega à medicina

 

Com o Renascimento, a redescoberta do espírito da Grécia Clássica traz novas luzes ao conhecimento humano. A arte é a primeira a ressurgir, seguida pela filosofia e pela ciência. O pensamento humano começa a ressuscitar os ideais da cultura grega e os anseios de liberdade e democracia renascem.

 

Nesse ressurgimento, porém, o grande adicional trazido a essas idéias na modernidade foram os direitos humanos. Os gregos não pensavam os direitos humanos como pertencentes à democracia. Eles pensavam a democracia como pertencente ao povo. No século XVIII, quando a democracia ressurge, ela não é apenas o poder do povo, mas também uma série de direitos de cada um. O direito ao voto, o direito à livre expressão, o direito à propriedade e outros (3).

 

Na verdade, basta acompanhar as declarações fundamentais de direitos da humanidade para que se verifique como foram se definindo e concretizando, desde a Magna Carta outorgada pelo Rei João Sem Terra, em 1215, passando pela Grande Carta de Henrique III, de 11/2/1225, pelo Bill of Rights, de 1689, pela Declaração de Direitos da Virgínia, de 12/6/1776, pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 2/10/1789, pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1793, até a Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada pela ONU em 10/12/1948 (5).

 

Todas as revoluções democráticas ocorridas no mundo ocidental a partir do século XVIII tiveram por base defender estes princípios. O mais curioso é que este movimento pluralista e democrático, que se instalou na vida civil das sociedades ocidentais, só chegou à medicina recentemente. Na relação médico-paciente, este (paciente) continuou a ser considerado não só como incompetente físico mas também moral; por isso, devia ser conduzido em ambos os campos por seu médico. Desse modo, a relação médico-paciente tem sido tradicionalmente paternalista e absolutista (6).

 

Em 1969, nos Estados Unidos, por um acordo entre um grupo de associações de consumidores e usuários e a Comissão Americana de Creden-ciamento de Hospitais (JCAH), surgiu um documento que é considerado a primeira carta de Direitos do Paciente, da perspectiva do usuário de hospitais. Em 1973, o Departamento de Saúde, Educação e Bem-Estar recomenda aos hospitais e outras entidades de saúde que adotassem e distribuíssem declarações de direitos dos pacientes. Nesse mesmo ano, a Associação Americana dos Hospitais (AHA) aprovou uma Carta de Direitos do Paciente. Outros países passaram a adotar a mesma medida (7).

 

Note-se que o movimento pelos direitos do paciente, nos Estados Unidos, não se originou de uma luta social pela liberdade, mas pelos direitos do consumidor, isto é, quem paga pelo serviço tem direito sobre a qualidade do atendimento. Entretanto, à medida que essa idéia se divulgou, o seu caráter sofreu alterações e os seus limites se ampliaram. Concomitantemente, ocorreu um outro fenômeno: os avanços tecnológicos criaram grandes dilemas morais, propiciando o nascimento da Bioética _ ou melhor, da reflexão bioética, que proporciona um marco filosófico e moral para resolver estas questões de forma ordenada e justa, respeitando e tolerando a ética e as diversas crenças profissionais e pessoais (8).

 

Visualizando-se, atualmente, esses fenômenos dentro da perspectiva histórica, as Declarações de Direitos do Paciente, somadas aos questio-namentos de ordem ética surgidos com os avanços tecnológicos e ao aparecimento da Bioética, provocaram ou estão provocando, na ética dos profissionais de saúde, uma verdadeira revolução _ que poderia ser enfocada como a chegada da Revolução Francesa na Medicina, ou melhor dito, nas ciências da saúde.

 

Apesar de transcorridos dois séculos da convulsão social ocorrida na França para consagrar os seus ideais, o processo de sua implantação continua sendo o foco das principais lutas na sociedade atual. Pouco a pouco, porém, eles estão sendo assimilados pelas pessoas, integrando-se à cultura. A medicina e as demais ciências da saúde estão agora sentindo o seu impacto e incorporando-os à subcultura médica.

 

A Revolução Francesa estabeleceu três princípios básicos para a existência de uma sociedade humana justa, onde os homens possam viver com dignidade: liberdade, igualdade e fraternidade.

 

Em bioética, a relação médico-paciente pode reduzir-se a três tipos de agentes: o médico, o paciente e a sociedade. Cada um com um significado moral específico: o paciente atua guiado pelo princípio da autonomia, o médico pelo da beneficência e a sociedade pelo da justiça.

 

A autonomia corresponde, nesse sentido, ao princípio de liberdade, a beneficência ao de fraternidade e a justiça ao de igualdade.

 

Conceito de autonomia

 

Autonomia é um termo derivado do grego "auto" (próprio) e "nomos" (lei, regra, norma). Significa autogoverno, autodeterminação da pessoa de tomar decisões que afetem sua vida, sua saúde, sua integridade físico-psíquica, suas relações sociais. Refere-se à capacidade de o ser humano decidir o que é "bom", ou o que é seu "bem-estar".

 

A pessoa autônoma é aquela que tem liberdade de pensamento, é livre de coações internas ou externas para escolher entre as alternativas que lhe são apresentadas. Para que exista uma ação autônoma (liberdade de decidir, de optar) é também necessária a existência de alternativas de ação ou que seja possível que o agente as crie, pois se existe apenas um único caminho a ser seguido, uma única forma de algo ser realizado, não há propriamente o exercício da autonomia. Além da liberdade de opção, o ato autônomo também pressupõe haver liberdade de ação, requer que a pessoa seja capaz de agir conforme as escolhas feitas e as decisões tomadas.

 

Logo, quando não há liberdade de pensamento, nem de opções, quando se tem apenas uma alternativa de escolha, ou ainda quando não exista liberdade de agir conforme a alternativa ou opção desejada, a ação empreendida não pode ser julgada autônoma (9).

 

Evolução histórica do respeito à autonomia

 

A conquista do respeito à autonomia é um fenômeno histórico bastante recente, que vem deslocando pouco a pouco os princípios da beneficência e da não-maleficência como prevalentes nas ações de assistência à saúde. A partir dos anos 60, movimentos de defesa dos direitos fundamentais da cidadania e, especificamente, dos reivin-dicativos do direito à saúde e humanização dos serviços de saúde vêm ampliando a consciência dos indivíduos acerca de sua condição de agentes autônomos (6,10)

 

No Brasil, desde a década de 80, códigos de ética profissional vêm tentando estabelecer uma relação dos profissionais com seus pacientes, na qual o princípio da autonomia tenda a ser ampliado. Em nosso país, cresce a discussão e a elaboração de normas deontológicas sobre as questões que envolvem as relações da assistência à saúde, contendo os direitos fundamentais que devem reger a vida do ser humano. Tal compreensão é encontrada no artigo 46 do Código de Ética Médica, que veda ao médico "efetuar qualquer procedimento médico sem o esclarecimento e o consentimento prévios do paciente ou de seu representante legal, salvo em iminente perigo de vida". Por sua vez, os artigos 56 e 59 reforçam o direito de o paciente decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas e terapêuticas, e o seu direito à informação sobre o diagnóstico, o prognóstico, os riscos e objetivos do tratamento. Os profissionais são, ainda, interditados de limitar o direito dos pacientes decidirem livremente sobre sua pessoa ou sobre seu bem-estar (art.48), princípio que, com relação às pesquisas médicas, é reforçado pelos artigos 123 e 124.

 

Fundamentos da autonomia

 

O princípio da autonomia não deve ser confundido com o princípio do respeito da autonomia de outra pessoa. Respeitar a autonomia é reconhecer que ao indivíduo cabe possuir certos pontos de vista e que é ele quem deve deliberar e tomar decisões segundo seu próprio plano de vida e ação, embasado em crenças, aspirações e valores próprios, mesmo quando divirjam daqueles dominantes na sociedade ou daqueles aceitos pelos profissionais de saúde. O respeito à autonomia requer que se tolerem crenças inusuais e escolhas das pessoas desde que não constituam ameaça a outras pessoas ou à coletividade. Afinal, cabe sempre lembrar que o corpo, a dor, o sofrimento, a doença são da própria pessoa.

 

O respeito pela autonomia da pessoa conjuga-se com o princípio da dignidade da natureza humana, aceitando que o ser humano é um fim em si mesmo, não somente um meio de satisfação de interesses de terceiros, comerciais, industriais, ou dos próprios profissionais e serviços de saúde. Respeitar a pessoa autônoma pressupõe a aceitação do pluralismo ético-social, característico de nosso tempo.

 

A autonomia expressa-se como princípio de liberdade moral, que pode ser assim formulado: todo ser humano é agente moral autônomo e como tal deve ser respeitado por todos os que mantêm posições morais distintas (...) nenhuma moral pode impor-se aos seres humanos contra os ditames de sua consciência (4).

 

Certamente que não se espera que a autonomia individual seja total, completa. Autonomia completa é um ideal. Longe de se imaginar que a liberdade individual possa ser total, que não existam nas relações sociais forte grau de controle, de condicionantes e restrições à ação individual. Mas, se o homem não é um ser totalmente autônomo isto necessariamente não significa que sua vida esteja totalmente determinada por emoções, fatores econômicos e sociais ou influências religiosas. Apesar de todos os condicionantes, o ser humano pode se mover dentro de uma margem própria de decisão e ação.

 

Como afirma Chaui (11), a deliberação, no campo da ética, se faz dentro do possível. Se, por vezes, não podemos escolher o que nos acontece, podemos escolher o que fazer diante da situação que nos foi apresentada.

 

Enquanto Immanuel Kant aceita a autonomia como manifestação da vontade, John Stuart Mill, um dos pais da corrente ética utilitarista, preferia considerá-la como ação e pensamento. Argumentava que o controle social e político sobre as pessoas seria permissível e defensável quando fosse necessário prevenir danos a outros indivíduos ou à coletividade. Aos cidadãos é permitido que desenvolvam seu potencial de acordo com as suas convicções, desde que não interfiram com a liberdade dos outros.

 

O ser humano não nasce autônomo, torna-se autônomo, e para isto contribuem variáveis estruturais biológicas, psíquicas e socioculturais. Porém, existem pessoas que, de forma transitória ou permanente, têm sua autonomia reduzida, como as crianças, os deficientes mentais, as pessoas em estado de agudização de transtornos mentais, indivíduos sob intoxicação exógena, sob efeito de drogas, em estado de coma, etc.

 

Uma pessoa autônoma pode agir não-autonomamente em determinadas circunstâncias. Por isso, a avaliação de sua livre manifestação decisória é uma das mais complexas questões éticas impostas aos profissionais de saúde. Desordens emocionais ou mentais, e mesmo alterações físicas, podem reduzir a autonomia do paciente, podendo comprometer a apreciação e a racionalidade das decisões a serem tomadas. Nas situações de autonomia reduzida cabe a terceiros, familiares ou mesmo aos profissionais de saúde decidirem pela pessoa não-autônoma.

 

O conceito legal de competência é intimamente relacionado ao conceito de autonomia. Não costumamos questionar a competência de decisão de um paciente quando sua decisão concorda com nossas escolhas. Ao contrário, somente quando a sua decisão conflita com a nossa, como no caso de recusa a se submeter a um procedimento que indicamos, é que a questão da validade da decisão é questionada. O julgamento de competência-incompetência de uma pessoa deve ser dirigido a cada ação particular e não a todas as decisões que a pessoa deva tomar em sua vida, mesmo com aqueles indivíduos legalmente considerados como incompetentes. Concordamos com Culver (12), ao afirmar que todos os pacientes devem ser julgados capazes até prova de sua incompetência, de que sua autonomia está reduzida.

 

A pessoa acometida por transtornos mentais, assim como os indivíduos retidos em estabelecimentos hospitalares ou de custódia, não devem ser vistos como totalmente afetados em sua capacidade decisional. O simples fato da existência do diagnóstico de uma doença mental não implica que ocorra incapacidade do indivíduo para todas as decisões a serem tomadas com respeito à sua saúde ou vida. No âmbito legal, presume-se que um adulto é competente até que o Poder Judiciário o considere incompetente e restrinja seus direitos civis, mas no campo da ética raramente se julga uma pessoa incompetente com respeito a todas as esferas de sua vida. Mesmo os indivíduos considerados incapazes para certas decisões ou campos de atuação, são competentes para decidir em outras situações (13).

 

Os grupos socioeconomicamente vulneráveis, os mais desprovidos de recursos, têm menos alternativas de escolha em suas vidas, o que afeta o desenvolvimento de seu potencial de ampla autonomia mas não significa que devam ser vistos como pessoas que não podem decidir autonomamente, que os médicos devam decidir por eles.

 

Cabe particularizar a situação da autonomia dos adolescentes. O Código de Ética dos médicos incorporou a noção da maioridade sanitária, sem pronunciá-la expressamente, pois possibilita aos profissionais ocultarem informações a respeito de pacientes menores de idade, a seus pais ou responsáveis legais, quando julgarem que os adolescentes tenham competência para decidir a partir de uma avaliação adequada de seus problemas de saúde. Diz o art. 103 do CEM: "É vedado ao médico revelar segredo profissional referente a paciente menor de idade, inclusive a seus pais ou responsáveis legais, desde que o menor tenha capacidade de avaliar seu problema e de conduzir-se por seus próprios meios para solucioná-lo, salvo quando a não revelação possa acarretar danos ao paciente."

 

Limites à autonomia

 

Há um temor que a absolu-tização da autonomia individual gere um culto ao privativismo moral, um incentivo ao individualismo que seja insensível aos outros seres humanos, dificultando a existência de solidariedade entre as pessoas. Autonomia não significa individualismo, pois o homem vive em sociedade e a própria ética é um dos mecanismos de regulação das relações entre os seres humanos que visa garantir a coesão social e harmonizar interesses individuais e coletivos. A socialização do homem, desde a infância, lhe dá condicionantes morais, mas uma sociedade livre estimula que as autonomias individuais sejam desenvolvidas, que se possa escolher entre as diversas morais existentes em cada momento histórico vivido.

 

A autonomia não deve ser convertida em direito absoluto; seus limites devem ser dados pelo respeito à dignidade e à liberdade dos outros e da coletividade. A decisão ou ação de pessoa, mesmo que autônoma, que possa causar dano a outra(s) pessoa(s) ou à saúde pública poderá não ser validada eticamente.

 

Se a garantia do princípio da autonomia requer o respeito a padrões morais que não sejam convencionais, padrões que não são majoritários na sociedade, isto não significa a defesa de uma ética sem limites. A opção ética para ser validada deve, segundo Singer (14), ter justificativas que demonstrem que ela não é exclusivamente pessoal. É necessário que os princípios defendidos estejam em conformidade com princípios mais amplos, que tendam a ser universalizáveis. Se a ética que defendemos fundamenta-se no indivíduo, sua liberdade deve ter como fronteiras a dignidade e a liberdade dos outros seres humanos. Deve-se ainda salientar que a autonomia do paciente, não sendo um direito moral absoluto, poderá vir a se confrontar com a do profissional de saúde. Este pode, por razões éticas, a denominada cláusula de consciência, se opor aos desejos do paciente de realizar certos procedimentos, tais como técnicas de reprodução assistida, eutanásia ou aborto, mesmo que haja amparo legal ou deontológico para tais ações.

 

A Constituição brasileira assegura o direito à autonomia a todos os cidadãos ao incluir a determinação de que ninguém pode ser obrigado a fazer ou a deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. E o Código Penal Brasileiro exige o respeito a esse direito ao punir, em seu artigo 146, aquele que constranger outrem a fazer o que a lei não manda ou a deixar de fazer o que a lei manda. Essa nossa legislação penal coloca, porém, uma exceção à autonomia: quando se tratar de caso de iminente perigo de vida ou para evitar suicídio, o constrangimento da vítima deixa de ser crime. Em outras palavras, a nossa legislação garante ao cidadão o direito à vida, mas não sobre a vida; ele tem plena autonomia para viver, mas não para morrer.

 

Paternalismo

 

Pode-se conceituar paternalismo como a interferência do profissional de saúde sobre a vontade de pessoa autônoma, mediante ação justificada por razões referidas, exclusivamente, ao bem-estar, alegria, necessidades, interesses ou valores da pessoa que está sendo tratada. O paternalismo existente na interação médico-paciente é concebido como sendo uma característica relacional básica, que aliás distingue o contrato médico de outras relações contratuais. Por vezes, o paternalismo médico é reconhecido sob a denominação de privilégio terapêutico.

 

As condutas paternalistas na prática médica originam-se dos fundamentos hipocráticos, para quem o médico deveria aplicar "os regimes para o bem dos doentes, segundo seu saber e razão (...)", não concedendo lugar à autonomia da pessoa que tratava. A ação seria feita com base na opinião exclusiva do médico e não da vontade autônoma do paciente. Fundamenta-se na tese do predomínio, em determinadas circunstâncias, avaliadas e consideradas pelo próprio médico, do princípio de não causar dano, que em casos específicos sobrepuja e pode mesmo se opor ao princípio da autonomia do indivíduo.

 

Segundo Culver & Gert (15), para que um comportamento seja adequado à noção de privilégio terapêutico é necessário que se guie por certas premissas, que se evidenciam no relacionamento médico-paciente. O médico deve acreditar que sua ação é benéfica a outra pessoa _ e não a ele próprio ou terceiros _ e que sua ação não envolva uma violação de regra moral. Deverá, também, não ter no passado, no presente ou mesmo em futuro próximo o consentimento da outra pessoa que deve ser competente para tomar decisões. Esta forma de ver a relação profissional de saúde-paciente legitima, por exemplo, que se maneje qualitativa ou quantitativamente as informações a serem dadas ao doente sobre seu diagnóstico e prognóstico, por vezes isentando-o da obrigação de revelá-las quando considere que possam conduzir a uma deterioração do estado físico ou psíquico do paciente.

 

O paternalismo é defendido como ação necessária empreendida pelo médico no interesse daquele a quem trata. Konrad (16) considera que a conduta paternalista acabaria por ter um fim restaurador da autonomia individual, de condições adequadas de compreensão, deliberação e tomada de decisão. Logo, o ato paternalista seria uma resposta a incapacidades, e não uma negação dos direitos das pessoas.

 

O Código de Ética Médica brasileiro, apesar de dispor sobre a obrigatoriedade do recolhimento do consentimento para validar o ato médico, de certa maneira aceita atos paternalistas pois permite que, em algumas circustâncias, sejam ocultadas informações que possam provocar danos psicológicos ao paciente, apesar de observar ser mandatório que seja comunicado seu responsável legal (CEM, art.59).

 

Temos posição contrária à preponderância, em nosso meio, da utilização de condutas paternalistas que muitas vezes não têm nada de paternalistas, não ocorrem no interesse da pessoa assistida, mas são fruto do autoritarismo de nossa sociedade, expresso nas relações do sistema de saúde. Entendemos que em situações em que a autonomia está reduzida devam prevalecer os princípios da beneficência e da não-maleficência, pois a pessoa não tem condições de manifestar livre e esclarecidamente sua vontade autônoma. Porém, somos contrários a que os médicos decidam, diante de uma pessoa autônoma, o que é bom para ela, o que deverá ser seu bem-estar, sua qualidade de vida, fundamentados em seus próprios valores (dos profissionais). É preciso não esquecer que, muitas vezes, médicos e pacientes provêm de classes sociais distintas, com distintos valores socioculturais, valores esses que podem entrar em choque nas relações estabelecidas entre as duas partes.

 

A medicina compartilhada

 

A postura do médico na relação com o paciente, dentro dos princípios bioéticos, é a de consultor, conselheiro, parceiro, companheiro e amigo, com maior ou menor predomínio de um desses papéis na dependência das características de personalidade do paciente e do próprio médico. É um relacionamento muito similar ao do advogado e seu cliente: o médico é o profissional que eu chamo, para estar ao meu lado e me defender, quando me sinto ameaçado em minha saúde. Como consultor, pelos seus conhecimentos pode esclarecer-me sobre as ameaças à minha saúde, sobre os modos possíveis de combatê-las, os riscos e benefícios esperados. Como conselheiro e profissional capaz, sei que indicará e aplicará os recursos e técnicas mais adequados e, como conhecedor que é dos avanços da ciência médica, poderá instruir-me sobre a melhor estratégia que, em sua opinião, deveria ser adotada. Como parceiro, se disporá a agir (por exemplo, realizar uma cirurgia ou outro procedimento) ou a indicar o profissional ou serviço capaz de fazê-lo. Como companheiro, sei que posso contar com seu auxílio sempre que precisar. Mas, como herdeiro da cultura latina, gostaria mesmo era de ter nele um amigo! Um amigo que desse o melhor de seu conhecimento, experiência e dedicação ao assistir-me nas decisões a serem tomadas, mas respeitasse minha autonomia para decidir o que é melhor para mim; o papel do amigo é de estar junto e não de abandonar o paciente, na solidão do seu sofrimento, para que decida sozinho. E lá no fundo de meu ser ainda esperaria dele algo mais: que, no momento da minha aflição, quando a dor turvar meu pensamento e a desesperança me furtar o desejo de agir, não tivesse de seus lábios apenas uma sentença fria a massacrar meu anseio de vida, mas encontrasse um artista sensível, experiente na arte de curar, que saberia sedar meu sofrimento com aquele "remedinho verde", da cor da Medicina, que só o médico _ com todas as letras maiúsculas _ sabe aplicar" (17).

 

Há ainda um detalhe importante a ser lembrado: alguns profissionais aderem tão intensamente ao princípio da autonomia que não aceitam que o paciente diga: _ Doutor, eu faço o que o senhor achar melhor! E acabam impondo a ele, tiranicamente, a "autonomia" que ele não deseja, isto é, as decisões que ele se recusa a tomar.

 

A nosso ver, se o paciente foi esclarecido pelo médico e opta pela postura de não escolher nenhuma das alternativas propostas, mas sim a de adotar aquela que o médico achar mais adequada, ele já decidiu e portanto está exercendo sua autonomia; forçá-lo a tomar qualquer decisão diferente da que escolheu significa constrangê-lo e agir com autoritarismo. Em outras palavras, renunciar à autonomia também é exercer seu direito à autonomia e impor a autonomia ao paciente é autoritarismo.

 

Consentimento livre e

 

esclarecido

 

A pessoa autônoma tem o direito de consentir ou recusar propostas de caráter preventivo, diagnóstico ou terapêutico que afetem ou venham a afetar sua integridade físico-psíquica ou social.

 

A noção do consentimento na atividade médica é fruto de posições filosóficas relativas à autonomia do ser humano quando de decisões tomadas em tribunais. Na esfera jurídica, a primeira decisão que tratou da questão parece ter sido o caso Slater versus Baker & Staplenton, julgado em 1767 na Inglaterra: dois médicos foram considerados culpados por não terem obtido o consentimento do paciente quando da realização de cirurgia de membro inferior que resultou em amputação. Deve-se lembrar que naquela época o consentimento já era demandado não só por motivos éticos e legais mas também pela necessidade da cooperação do paciente na realização do ato cirúrgico, pois ainda não eram suficientemente desenvolvidas as práticas anestésicas. O processo Schloendorff versus Society of New York Hospitals, do início deste século, foi o responsável pelo desenvolvimento da reflexão doutrinária nos meios jurídicos norte-americanos. Refere-se à senhora que, em 1908, dirigindo-se ao New York Hospital, com queixas abdominais, foi examinada por médico que diagnosticou a existência de tumor benigno instalado no útero, para o qual indicou ser necessária a realização de procedimento cirúrgico. A paciente submeteu-se à cirurgia, tendo seu útero extirpado. Mas pouco tempo após a realização do ato, acusa o médico e o hospital perante os tribunais alegando ter sido enganada e operada sem que houvesse dado seu consentimento. Afirmava somente ter autorizado ser anestesiada para procedimentos diagnósticos, e não cirúrgicos. O caso chegou à Corte Suprema do Estado de New York, que sentenciou favoravelmente à queixosa. Ocasião em que o juiz Cardozo se expressa: "Todo ser humano na vida adulta e com a mente sã tem o direito de determinar o que deve ser feito com seu próprio corpo".

 

Porém, somente em 1957, é que aparece a expressão informed consent, cunhada pela corte californiana julgadora do caso Salgo versus Leland Stanford Jr., University of Trustees. Este caso se referia a um homem que fôra submetido a uma aortografia transtorácica realizada devido à suspeita de obstrução da aorta abdominal; posteriormente ao procedimento, o paciente sofrera paralisia dos membros inferiores, complicação dada como rara para a técnica utilizada na época. Os magistrados do caso julgaram que houve conduta culposa por parte dos operadores, porque não haviam revelado ao enfermo as possibilidades de riscos da técnica empregada, e por isso cabia a sanção indenizatória (18).

 

Porém, deve-se ressaltar que do ponto de vista ético a noção do consentimento esclarecido pode diferir da forma adotada pelos tribunais. No Brasil, o não recolhimento do consentimento da pessoa é tipificado como ilícito penal apenas quando for ocasionado por uma conduta dolosa, de acordo com o art.146, § 3º, I, do Código Penal. A norma penal requer somente um consentimento simples, significando o direito à recusa. O atendimento do princípio ético do respeito à autonomia da pessoa requer mais, não se limita ao simples direito à recusa ou ao consentimento simples, requer um consentimento livre, esclarecido, renovável e revogável. O consentimento deve ser dado livremente, conscientemente, sem ser obtido mediante práticas de coação física, psíquica ou moral ou por meio de simulação ou práticas enganosas, ou quaisquer outras formas de manipulação impeditivas da livre manifestação da vontade pessoal. Livre de restrições internas, causadas por distúrbios psicológicos, e livre de coerções externas, por pressão de familiares, amigos e principalmente dos profissionais de saúde. O consentimento livre requer que o paciente seja estimulado a perguntar, a manifestar suas expectativas e preferências aos profissionais de saúde (19).

 

Aceita-se que o profissional exerça ação persuasiva, mas não a coação ou a manipulação de fatos ou dados. A persuasão entendida como a tentativa de induzir a decisão de outra pessoa por meio de apelos à razão é validada eticamente. Porém, a manipulação, tentativa de fazer com que a pessoa realize o que o manipulador pretende, sem que o manipulado saiba o que ele intenta, deve ser eticamente rejeitada.

 

Para Hewlett, o consentimento só é moralmente aceitável quando está fundamentado em quatro elementos: informação, competência, entendimento e voluntariedade (20).

 

A informação é a base das decisões autônomas do paciente, necessária para que ele possa consentir ou recusar as medidas ou procedimentos de saúde que lhe foram propostos. O consentimento esclarecido requer adequadas informações, compreendidas pelos pacientes. A pessoa pode ser informada, mas isto não significa que esteja esclarecida, caso ela não compreenda o sentido das informações fornecidas, principalmente quando as informações não forem adaptadas às suas circunstâncias culturais e psicológicas. Não é necessário que os profissionais de saúde apresentem as informações utilizando linguajar técnico-científico. Basta que elas sejam simples, aproximativas, inteligíveis, leais e respeitosas, ou seja, fornecidas dentro de padrões acessíveis ao nível intelectual e cultural do paciente, pois quando indevidas e mal organizadas resultam em baixo potencial informativo, em desinformação.

 

O paciente tem o direito moral de ser esclarecido sobre a natureza e os objetivos dos procedimentos diagnósticos, preventivos ou terapêuticos; ser informado de sua invasibilidade, da duração dos tratamentos, dos benefícios, prováveis desconfortos, inconvenientes e possíveis riscos físicos, psíquicos, econômicos e sociais que possa ter. O médico deve esclarecer, quando for o caso, sobre as controvérsias quanto as possíveis alternativas terapêuticas existentes. A pessoa deve ser informada da eficácia presumida das medidas propostas, sobre as probabilidades de alteração das condições de dor, sofrimento e de suas condições patológicas, ou seja, deve ser esclarecido em tudo aquilo que possa fundamentar suas decisões. Quanto aos riscos, devem compreender sua natureza, magnitude, probabilidade e a iminência de sua materialização. A informação a ser fornecida deve conter os riscos normalmente previsíveis em função da experiência habitual e dos dados estatísticos, não sendo preciso que sejam informados de riscos excepcionais ou raros.

 

Na prática dos profissionais de saúde comumente se apresentam três padrões de informação. O primeiro é o padrão da "prática profissional", onde o profissional de saúde revela aquilo que um colega consciencioso e razoável teria informado em iguais ou similares circunstâncias. Nesta padronização, a revelação das informações é a determinada pelas regras habituais e práticas tradicionais de cada profissão. É o profissional que estabelece o balanço entre as vantagens e os inconvenientes da informação, assim como os tópicos a serem discutidos e a magnitude de informação a ser revelada em cada um deles (21).

 

A nosso ver, este padrão de informação negligencia o princípio ético da autonomia do paciente, pois o profissional se utiliza de parâmetros já estabelecidos por sua categoria, não adaptando ou individualizando as informações aos reais interesses de cada indivíduo.

 

O segundo padrão encontrado é o da "pessoa razoável", que se fundamenta sobre as informações que uma hipotética pessoa razoável, mediana, necessitaria saber sobre determinadas condições de saúde e propostas terapêuticas ou preventivas a lhe serem apresentadas. Esse modelo se baseia numa abstração do que seria uma pessoa razoável, um ser considerado como representação da "média" de uma determinada comunidade e cultura. Não se requer que o profissional se disponha a revelar informações que julgue estar fora dos limites traçados pela figura hipotética da pessoa razoável. O profissional, ao utilizar tal modelo, continua a decidir o que será ou não revelado. Também, em nosso entender, o padrão da "pessoa razoável" tende a negligenciar o princípio ético da autonomia do paciente.

 

A utilização de formulários padronizados sobre os procedimentos a serem realizados em determinadas patologias, cirurgias e agravos à saúde segue freqüentemente este padrão de informações. Geralmente, essas fórmulas padronizadas, se bem que tendo sua importância na disseminação de conhecimentos sobre os eventos de saúde, não são suficientes para garantir adequada informação, que deve ser personalizada para obedecer aos princípios éticos apresentados. Muitas vezes, informações por escrito consistem em mero rito legal e administrativo, por isso não devem ser fontes exclusivas de esclarecimento da pessoa assistida.

 

O terceiro padrão é o denominado "orientado ao paciente" ou "padrão subjetivo". Utilizando-o, o profissional procura uma abordagem informativa apropriada a cada pessoa, personalizada, passando as informações a contemplarem as expectativas, os interesses e valores de cada paciente, observados em sua individualidade. Advogamos a utilização deste padrão de informações, pois requer do profissional descobrir, baseado nos conhecimentos e na arte de sua prática, e observando as condições emocionais do paciente e fatores sociais e culturais a ele relacionados, o que realmente cada indivíduo gostaria de conhecer e o quanto gostaria de participar das decisões.

 

Do ponto de vista ético, a informação a ser transmitida ao paciente é mais ampla do que exigem as normas legais e as decisões dos tribunais _ que tendem a acatar a validade dos dois primeiros padrões de informação anteriormente citados (22).

 

Enfaticamente, devemos discordar dos que consideram que para a maioria dos pacientes em nosso meio é praticamente impossível estabelecer condições para a utilização cotidiana do "padrão subjetivo" devido ao baixo nível intelectual e sociocultural dos pacientes que freqüentam as instituições. Consideramos insatisfatórias as explicações que argumentam que boa parte dos pacientes de instituição hospitalar não compreende as informações que lhes são reveladas. Tais afirmativas trazem consigo, disfarçados ou inconscientes, preconceitos étnicos ou de classe social. Muitas vezes, se os pacientes não compreendem as informações a causa está na inadequação da informação e não na pretensa incapacidade de compreensão (23). Certamente, não defendemos o modo norte-americano de informar. Independentemente do padrão de informação utilizado, o profissional de saúde, principalmente os médicos, informam ao paciente, mesmo sobre prognósticos graves, quase sempre imediatamente após terem se certificado do diagnóstico. Isso ocorre pelo receio de promoção de sua responsabilidade jurídica, através de vultosas ações indenizatórias. Este tipo de conduta não atende à conjunção dos princípios éticos aqui dispostos, a autonomia, a beneficência e a não-malefi-cência, pois se preocupa apenas com requisitos legais.

 

A pessoa autônoma também tem o direito de "não ser informada". Ser informado é um direito e não uma obrigação para o paciente. Ele tem o direito de recusar ser informado. Nestes casos, os profissionais de saúde devem questioná-lo sobre quais parentes ou amigos quer que sirvam como canais das informações. É certo que o indivíduo capaz tem o direito de não ser informado, quando assim for sua vontade expressa. O respeito ao princípio da autonomia orienta que se aceite a vontade pessoal, impedindo os profissionais de saúde de lhe fornecerem informações desagradáveis e autorizando que estes últimos tomem decisões nas situações concernentes ao seu estado de saúde, ou, ainda, que devam preliminarmente consultar parentes ou amigos do paciente.

 

Para validar-se tal direito, o paciente deve ter clara compreensão que é dever do médico informá-lo sobre os procedimentos propostos, que tem o direito moral e legal de tomar decisões sobre seu próprio tratamento. Deve também compreender que os profissionais não podem iniciar um procedimento sem sua autorização, exceto nos casos de iminente perigo de vida. E, finalmente, que o direito de decisão inclui o de consentir ou de recusar a se submeter a determinado procedimento. A partir do preenchimento desses pressupostos, o paciente pode escolher não querer ser informado ou, alternativamente, que as informações sejam dadas a terceiros, ou ainda querer emitir seu consentimento sem receber determinadas informações.

 

Além de livre e esclarecido o consentimento deve ser renovável quando ocorram significativas modificações no panorama do caso, que se diferenciem daquele em que foi obtido o consentimento inicial. Quando preliminarmente recolhido, o foi dentro de determinada situação, sendo assim, quando ocorrerem alterações significantes no estado de saúde inicial ou da causa para a qual foi dado, o consentimento deverá ser necessariamente renovado. A esse propósito, deve-se ponderar sobre a prática comum adotada, principalmente nos ambientes hospitalares, a respeito do denominado "termo de responsabilidade". Quando o consentimento inicial, na entrada ao ambiente hospitalar, é tido como permanente e imutável, mesmo que ocorram modificações importantes no estado de saúde, pode se estar violando a vontade autônoma da pessoa. É como comprar algo e assinar, apesar das letras miúdas, sem realmente saber com o que se está concordando.

 

É ainda importante salientar que o consentimento dado anteriormente não é imutável, pode ser modificado ou mesmo revogado a qualquer instante, por decisão livre e esclarecida da pessoa assistida, sem que a ela devam ser contrapostas objeções e sanções morais ou administrativas.

 

Cabe também fazer-se distinção entre o consentimento esclarecido, que consiste em um processo para contribuir na tomada de decisão, pelo paciente, do termo de consentimento, que é um documento legal, assinado pelo paciente ou por seus responsáveis com o intuito de respaldar juridicamente a ação dos profissionais e dos estabelecimentos hospitalares. Este último tem pouca validade ética quando não contempla os fundamentos do processo de manifestação autônoma da vontade do paciente. As decisões envolvendo procedimentos diagnósticos ou terapêuticos infreqüentemente se esgotam em uma única ocasião, ao contrário, ocorrem no transcorrer de toda a relação médico-paciente. No ambiente hospitalar as decisões também não se restringem somente aos médicos, mas envolvem diversos profissionais de saúde que participam na assistência ao paciente.

 

Não queremos minimizar a evidente limitação ao direito do paciente à informação imposta pelas condições de atendimento em prontos-socorros e serviços de emergência. O tempo de contato entre os profissionais e pacientes nessas condições é aquém do desejável, e isto evidentemente impossibilita o estabelecimento de uma adequada e necessária comunicação.

 

A ação dos profissionais de saúde nas situações de emergência, em que os indivíduos não conseguem exprimir suas preferências ou dar seu consentimento, fundamentam-se no princípio da beneficência, assumindo o papel de protetor natural do paciente por meio de ações positivas em favor da vida e da saúde. Nas situações de emergência aceita-se a noção da existência de consentimento presumido ou implícito, pelo qual supõe-se que a pessoa, se estivesse de posse de sua real autonomia e capacidade, se manifestaria favorável às tentativas de resolver causas e/ou conseqüências de suas condições de saúde. Aliás, a inação nas circunstâncias de grave e iminente perigo de vida contraria o dever de solidariedade imposto pelo acatamento ao princípio de beneficência, podendo consubstanciar situação de omissão de socorro.

 

A compreensão jurídica prevalente e as normas de ética profissional dos médicos e dos profissionais de enfermagem apontam que no caso de iminente perigo de vida o valor da vida humana possa se sobrepor ao requerimento do consentimento e do esclarecimento do paciente (CEM, arts. 46 e 56). A sonegação de informações nessas situações é justificada pragmaticamente pela premência da necessidade de agir, confrontando-se com as dificuldades de ser estabelecida adequada comunicação.

 

Contudo, deve-se realçar que o "iminente perigo" não pode ser de modo que resulte em sonegação de informação/esclarecimento/direito de decisão, em ocasiões em que não existem justificativas éticas para desrespeitar a autonomia das pessoas. O Código de Ética Médica prevê que o proceder nas situações de iminente perigo de vida seja orientado pelos princípios éticos da beneficência e da não-maleficência, na proteção do bem-estar do paciente, assumindo o profissional o papel de protetor natural do mesmo. Porém, é preciso observar que nas próprias situações de exceção é eticamente desejável que decisões verdadeiramente autônomas dos pacientes ou de seus responsáveis sejam respeitadas, e que as normas dos códigos de ética profissional não sejam utilizadas, como freqüentemente acontece, contra os valores e objetivos de vida do paciente.

 

O termo de consentimento livre e esclarecido

 

Fornecer um texto padrão de consentimento livre e esclarecido para ser seguido, em nossa opinião, não é adequado. Alguns requisitos, entretanto, são básicos e não devem ser esquecidos quando da redação desse documento. Esses elementos essenciais de um termo de consentimento livre e esclarecido poderiam ser assim sumarizados:

 

1°) Ser feito em linguagem acessível;

 

2º) Conter: a) os procedimentos ou terapêuticas que serão utilizados, bem como seus objetivos e justificativas; b) desconfortos e riscos possíveis e os benefícios esperados; c) métodos alternativos existentes; d) liberdade do paciente recusar ou retirar seu consentimento, sem qualquer penalização e/ou prejuízo à sua assistência; e) assinatura ou identificação dactilos-cópica do paciente ou de seu representante legal.

 

A conduta ética na prática médica atual

 

A prática médica atual exige rupturas com o sistema ético tradicional?

 

A ética hipocrática baseia-se, fundamentalmente, nos princípios da beneficiência, não-maleficiência, respeito à vida, à privacidade e à confidencialidade.

 

Como regra geral, esses princípios tradicionais continuam válidos e adequados para nortearem a prática médica; o que deve, entretanto, ser acrescentado é o princípio do respeito à autonomia do paciente.

 

À manifestação autônoma da sua vontade, devidamente esclarecida pelo profissional de saúde, cabe a decisão final em cada procedimento. Ressalve-se que todos esses princípios não são absolutos e, portanto, admitem condutas de exceção.

 

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